Entrevista com Stephanie Borges

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Entrevista com Stephanie Borges

Tradutora do livro A Tradição, de Jericho Brown,
comenta a obra

23.03.2023

Stephanie Borges por Bruna Bernardo

Stephanie Borges por Bruna Bernardo

1. Qual é a sua relação com a obra de Jericho Brown? Como o conheceu? Quais foram os maiores desafios desta tradução?

A primeira vez que ouvi falar de Jericho Brown foi em uma entrevista da poeta Claudia Rankine que encontrei quando estava traduzindo o livro Cidadã (Jabuticaba, 2020). Ela elogiava o trabalho dele e, com uma busca rápida, encontrei alguns poemas no site Poetry Foudation que me impressionaram pela forma como ele trabalha com o ritmo e as imagens. 

Em 2019, quando The Tradition apareceu em várias listas de melhores livros 2019, comprei o e-book, mas fui lendo aos poucos. Apreciava um poema, dava um tempo. Só parei para ler a coletânea inteira com atenção depois do anúncio do Prêmio Pullitzer de 2020 e, então, traduzi alguns poemas para compartilhar com público brasileiro e chamar a atenção para o trabalho do poeta. Algumas dessas primeiras versões apareceram na revista online Escamandro.

A tradução foi um trabalho prazeroso, os poemas são muito bons. Um dos principais desafios foi encontrar equivalências a referências muito específicas da cultura negra dos Estados Unidos que fizessem sentido para os leitores brasileiros. 

2. Qual poema do livro você destacaria? Você conseguiria selecionar um poema que tenha te afetado mais neste processo?

Eu destacaria o poema Os pêssegos, é um dos que considero os mais bonitos do livro, pois é um poema sobre paternidade e amor a partir de um gesto simples de cuidado. 

Um poema que me afetou especialmente, como leitora e tradutora, foi Como um ser humano. É um poema que trata de temas complexos, como da violência nas relações familiares e da solidão, mas com uma leitura muito fluída. É um exemplo de como o trabalho de Brown é sofisticado, pois os leitores conseguem visualizar a cena da briga em casa, o trajeto da ambulância, o quarto do hospital, e se aproximar do sentimento de isolamento do jovem. É um poema muito cuidadoso com a escolha das palavras, o som e o ritmo criado pelo encadeamento dos versos. 

Os pêssegos

Escolhi esses dois, machucados —

Talvez maduros demais para levar, acariciando

Cada um enquanto os coloco

No meu carrinho, o menor

Com o caule um tanto

Intacto — porque eles me lembram

Das meninas que não serão meninas

Por muito tempo, ambas protegidas

E seguras como o tesouro

De um monarca num porão debaixo

Do porão de uma casa

Que herdei. Trabalhei duro e quero

Levar para elas algo doce

Para que saibam que sinto mais falta delas

Do que de outras pessoas. Mas antes

Peso os pêssegos, pago

Por eles, faço o breve percurso

Até minha infância, essa casa

De trincos, labirintos

E portas trancadas. Todas as chaves

São minhas agora, embora tenha escondido algumas

De mim. Eu me orgulho

Dos meus presentes. Invento, para vocês,

Um lugar para brincar e quando acharem

Que lá está escuro, entrego

As frutas como dois bulbos de luz

Dilatados que vocês podem segurar,

Observo seus olhos se avivarem enquanto vocês comem.

Como um ser humano

Existe a felicidade que você tem

E a felicidade que você merece.

Elas se sentam longe uma da outra

Como você e sua mãe

Se sentaram em pontas opostas do sofá

Depois que uma ambulância veio para

Buscar seu pai. Algum bom

Doutor vai remendá-lo, e

Em breve uma tia vai chegar e levar

Sua mãe para o hospital

Onde ela se acomodará ao lado dele

Para sempre, como prometido. Ela aperta

O braço da poltrona como se pudesse

Cair, como se fosse a única coisa firme,

E é, uma vez que você fez o que

Sempre quis, você brigou

Com seu pai e venceu, fez um estrago nele.

Ele terá uma cicatriz visível, tudo

Por sua causa. E sua mãe,

A única mulher pela qual você já chorou,

Deve cuidar disso como uma noiva cuida

De seus votos, abandonando todos os outros

Não importa quão doída a ferida

Não importa quão doído a ferida

Te deixou, você se senta e vê a si mesmo

Como um ser humano finalmente

Livre agora que ninguém precisa te amar.

3. Na sua opinião, quais são as ressonâncias que o livro promove com o momento atual do Brasil?

O lançamento de A tradição me parece relevante pois é um livro que aborda a vida negra com complexidade, considerando a coexistência da beleza, do trauma, das injustiças e do desejo. São poemas que acolhem as contradições e a humanidade de pessoas ignoradas por parte da literatura, ou tratadas como estereótipos. Os poemas de Brown apresentam histórias, momentos de beleza ou de dor com os quais nós, pessoas negras, nos reconhecemos com nuances e sutilezas.

A literatura que nos ajuda a entender pessoas diferentes de nós como sujeitos atravessados por suas histórias pessoais, lutas coletivas, projetos estéticos é muito importante no combate das ideias conservadoras e fascistas que circulam na nossa sociedade. 

Em um momento em que reivindicações contra desigualdades socioeconômicas são reduzidas a “discursos identitários”, a poesia de um homem negro que dedica uma atenção especial a pessoas historicamente excluídas nos estimula a pensar sobre a convivência entre diferentes. Nesse período em que se pensa tanto uma possível reconstrução do Brasil, a convivência e o combate aos preconceitos são fundamentais.  

4. Qual é o verso do livro mais marcante para você?

“Um poema é um gesto em direção ao lar”, do poema Duplex.

5. Há alguma anedota/curiosidade sobre o processo de tradução, o autor ou o livro que você gostaria de comentar? 

Eis um exemplo de como as soluções para uma tradução podem vir das referências culturais mais inesperadas:

O poema Turno da noite trata do desencontro entre dois homens que mantém relações sexuais sem um envolvimento afetivo. A voz poética conta sobre confundir violência e desejo e ser tratado com descaso por seu amante. Em inglês, há um jogo de palavras sobre o sexo causal com uma sonoridade irreproduzível em português:

“I once bothered with a man who called me Snack, Midnight Snack to be exact”.

Minha estratégia foi procurar uma expressão que transmitisse o deboche de alguém capaz de se referir a uma pessoa como uma refeição. A solução veio de um funk carioca dos anos 2000, “Lanchinho da madrugada” na qual o sexo casual é tratado com registro semelhante. 

“Uma vez me aborreci fiquei chateado com um homem que me chamou de Lanche. Lanchinho da madrugada para ser exato”.

Às vezes as nossas bagagens que parecem mais improváveis são justamente as que servem para a tradução de um poema fluir.

6. Você poderia citar 5 razões para os nossos leitores lerem este livro:

1. Os poemas de A tradição evocam a ideia de uma tradição poética e literária na forma dos poemas, mas também falam de pequenas tradições das comunidades negras do Sul dos EUA, como cultivar jardins, frequentar a igreja ou participar de bandas de metais.

2.  Jericho Brown tem um senso de humor irônico que se revela em alguns poemas de forma surpreendente. Inclusive nos poemas em que ele ri de si mesmo.

3. Os poemas podem partir de diálogos com a mitologia grega ou de situações banais como lembranças da escola, mas acabam tocando em algum ponto relevante da vida contemporânea.

4. Os versos trazem sequências de imagens e criam experiências sonoras, com aliterações e ressonâncias que tornam a leitura uma experiência prazerosa. 

5. Há uma referência a Stevie Nicks e a banda Fleetwood Mac em um dos poemas. (A tradutora gosta muito de Fleetwood Mac e do poema em questão).

por Isabella Martino

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