Caixa de fevereiro
Na caixa de fevereiro, os assinantes recebem Sílex, novo livro de Eliane Marques. A poeta, que já afirmou que escreve porque não sabe fazer tranças, faz tranças com as palavras e molda a linguagem até que tudo se desloque e se reinvente nas muitas camadas dos versos. Escrever, aqui, é batucar as sílabas, serpentear entre elas, e fazer com que os leitores sejam levados pelo ritmo de uma percussão das palavras que reverbera no corpo, soando com força e beleza extraordinárias. Também vai na caixinha a plaquete é perigoso deixar as mãos livres, de Isabela Bosi. Os versos calmos desse longo poema nos interpelam: em que momento, se tivesse seguido outro caminho, sua vida seria outra? Revisitando essas bifurcações, o poema exibe um filme estrelado por todos aqueles que decidimos não ser. Na plaquete, tudo o que existe convive com tudo que poderia ter existido. Estamos em outro corpo, noutro continente, em que crianças que não nasceram correm ao nosso redor, e escavamos a memória para revelar outros alguéns, porque não aceitamos a “vida condensada/ neste agora frágil”.
Livro de fevereiro
Autor
Eliane Marques
“Eu escrevo porque não sei fazer tranças e, por isso, quase por mágoa, quero trabalhar com as palavras como se tranças elas fossem.” Foi assim que Eliane Marques, um dos principais nomes da literatura contemporânea, definiu certa vez sua arte. De fato, a poeta molda a materialidade da linguagem e forma tranças com as palavras até que tudo se desloque e se reinvente nas muitas camadas dos versos.
E é nessas tranças-tramas que acontece a mágica de Sílex: as palavras conhecidas se tornam novas, quase estranhas, e as desconhecidas passam a soar íntimas e fazem vibrar novos sentidos. A voz da poeta batuca as sílabas e os leitores são levados pelo ritmo dessa percussão das palavras, que também reverbera em nosso corpo.
O livro se divide em três partes, que se referem a diferentes temporalidades: no tempo inicial, anterior à colonização, a divindade maia Qán, uma serpente, coloca-se em movimento; na seção seguinte, o serpentear de Qán funda um mundo novo que, na seção final, se transforma pela força de novos símbolos e signos, até que Qán se transfigura em Dán, também uma serpente, mas de outra tradição, a jeje.
Para forjar esses mundos e tempos, a autora cria uma “língua contínua/ [que] continua lambendo”. Nada é incorporado sem que a língua da poeta antes o tenha lambido, percutido e transformado em matéria própria. Consciente de que “o cômputo dos destroços termina nunca”, a voz que soa em Sílex é também política, mas nunca discursa pelos caminhos evidentes: com força e beleza extraordinárias, em mescla profunda, essa voz se ergue e encanta.
Plaquete de fevereiro
Autor
Isabela Bosi
Você lembra do exato momento em que poderia ter se tornado outra pessoa? Em que tomar uma decisão diferente inventaria outra vida para você? A voz que nos conduz pelas páginas de é perigoso deixar as mãos livres, de Isabela Bosi, circula pelas muitas bifurcações que nos interpelam durante a vida e faz, nas tramas do poema, um filme estrelado por todos aqueles que, de alguma maneira, decidimos não ser.
Em seus versos calmos e meditados, tudo o que existe — o país em que estão nossos pés reais, a casa em que alguma brisa nos surpreende, esta figuração que chamamos de “eu” — convive com tudo o que poderia ter existido (impossível não ouvir aqui o eco de Manuel Bandeira lamentando “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”). A poeta nos lembra que tecemos nossa passagem pelo tempo com fios materiais e imateriais.
Se a vida arrasta o corpo para um caminho, a memória faz com que todos os outros caminhos continuem sendo parte da nossa vida: “o som da turbina naquela/ tarde era como o som da/ turbina em qualquer dia da/ memória não fosse meu corpo/ agora outro dentro dessas/ roupas”. Bosi nos coloca num outro corpo, num outro continente talvez, em que crianças que não nasceram correm ao nosso redor. Espreita-nos, nos versos, a solidão da pessoa que não chegou a existir. É possível sentir o cheiro de um mar que só existe entre lembranças vagas, e até mesmo “os pelos do braço em contato/ com a saudade”.
Os leitores de poesia sabem que as palavras são capazes de nos fazer viver outras vidas — assim como permitem viver de outro modo esta mesma vida. Nos versos de Bosi, alguém escava a memória para revelar os outros alguéns soterrados sob seu nome, porque não aceita que viver seja apenas ajustar-se à “vida condensada/ neste agora frágil”.