Caixa de junho
Na caixa de junho, os assinantes recebem Por isso as papoulas, terceiro livro do poeta paraense Andreev Veiga. Em seus versos, vibra uma aguda capacidade de captar “a política no rosto do tempo” e acusar a violência que se imiscui na vida cotidiana enquanto “o fascismo […] nos enterra aos poucos”: trabalhadores, refugiados, artistas e outros “deslocados” formam aqui uma paisagem humana desoladora, mas “entre a batalha e o pessimismo/ impera um sorriso”. Afinal, amamos e sofremos: “não somos feitos de ferro/ e […] tudo não passa de orvalho”. Também vai na caixinha a plaquete As cidades, em que Caetano W. Galindo, tradutor consagrado e autor de reflexões deliciosas sobre a língua portuguesa, destaca da lista dos 5571 municípios brasileiros alguns nomes que têm algo especial a dizer “sobre a história toda de um país e suas línguas” e compartilha suas reflexões sobre essa escrita que, para além de criativa ou não criativa, é “recriativa” e recreativa. Repetir esses nomes em voz alta, de Abre Campo a Zortéa, é um pouco como desvendar seus sentidos, sua geografia e seu papel no universo que se esconde na palavra “nós”.
Livro de junho
Autor
Andreev Veiga
Por trás de cada palavra de Por isso as papoulas, terceiro livro do poeta paraense Andreev Veiga, vibra uma aguda capacidade de observação política, capaz de captar os desarranjos e os sofrimentos de nosso tempo em suas diferentes manifestações. No olhar do poeta explodem as violências da guerra, da fome, da desigualdade, do ódio, da incompreensão, mas a forma que ele encontra para atacar esse mal-estar em seus versos é trazê-lo para ainda mais perto, para dentro, agarrando-o com a força que resta.
Para mostrar esses corpos/vidas em que a história se elabora, o poeta dispõe em suas páginas uma paisagem humana desoladora: o trabalhador cujos “passos são uma linha de montagem” (“se a polícia o parar na rua/ vão querer saber a origem dessa miséria”); cantores desesperados, projetando sua voz desde a beira do abismo; empregadas que passam pela portaria de um condomínio como imigrantes forçadas a cruzar uma fronteira para sobreviver; alguém que se tranca no quarto na noite de Natal; o cheiro do corpo morto do pai que “permanece como uma história inacabada”; os refugiados, como o menino Alan Kurdi, que o poeta enxerga no lugar de banhistas numa praia qualquer (“há braçadas perdendo força/ e se desenham cruzes na linha do mar/ e há quem se banhe de costas para o horizonte/ e flutue distante das cruzes”).
Se “a compreensão das coisas está na poesia”, é preciso escrever cada verso para revelar “a política no rosto do tempo”. Nas palavras da poeta e tradutora Simone Brantes, que assina a orelha, “o que impressiona neste livro é a assertividade, o modo pelo qual a linguagem captura e recoloca à nossa frente, desnudada, a nossa condição presente, o estado do nosso mundo e de nossa alma”. E, mesmo cercada pelo “fascismo […] que nos enterra aos poucos”, não há resignação na voz que denuncia: “entre a batalha e o pessimismo/ impera um sorriso”. E amamos e sofremos porque “não somos feitos de ferro/ e […] tudo não passa de orvalho”. E papoulas, quem sabe?

Plaquete de junho
Autor
Caetano W. Galindo
O nome de Caetano W. Galindo é bastante conhecido dos leitores, seja por suas premiadas traduções (como o monumental Ulysses), seja pelas deliciosas reflexões sobre a língua portuguesa no já clássico Latim em pó (2022) e no recente Na ponta da língua (2025). Nas páginas de As cidades, Galindo apresenta uma outra face dessa sua profunda relação com a força das palavras.
Partindo da lição de “escrita não criativa”, que encontra literatura em outros textos e elementos já prontos por meio da colagem, do sample e até mesmo da cópia, Galindo passou pela lista dos 5571 municípios do Brasil colhendo nomes que lhe pareceram ter algo especial a dizer “sobre a história toda de um país e suas línguas”. E o resultado é um poema que vai, em ordem alfabética, de Abre Campo a Zortéa, levando o leitor para viajar por Axixá, Descanso, Icó, Mostardas, Piripiri, Sorriso e Tartarugalzinho, seguido de um ensaio precioso sobre o processo (re)criativo da plaquete.
Esse jogo de pescar palavras de um contexto para outro, segundo regras criadas (e também infringidas) pelo próprio poeta, revela “o que [se] articula de beleza em torno da simples ideia de olhar em volta e perceber que toda sorte de matéria verbal, quando exposta de maneira destacada, pode ser lida como poema. E deve”. Em cada palavra escolhida, paramos um pouquinho para respirar, repetir em voz alta, imaginar seus sentidos, sua geografia (humana, inclusive) e seu papel no universo que chamamos de “nós”.
Para Galindo, a escrita de As cidades vai além de criativa ou não criativa; é recriativa e também recreativa: “durante a concepção da exposição Fala, Falar, Falares, que Daniela Thomas e eu organizamos para o Museu da Língua Portuguesa [aberta à visitação até 14/9/2025], existia uma parede de dois metros por quatro que ia ficar sem nada escrito, e a Daniela me disse pra inventar alguma coisa. E tudo voltou à minha cabeça, e eu me diverti”. É impossível não se divertir com ele e voltar dessa viagem com os ouvidos mais atentos para cada palavra ao redor.
