“a cru, toda a matéria de um projeto”

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“a cru, toda a matéria de um projeto”

Júlio Castañon Guimarães, autor do livro Sequências responde a nossa entrevista

26.04.2023

Como nasce, em você, o poema, a palavra escrita? O que o impulsiona a escrever?
R: Acho que a escrita, mesmo a escrita do poema, não está separada de outras formas de contato com a literatura – no meu caso, sobretudo o preparo de edições e a tradução. A poesia é antes de tudo um objeto de estudo, estudo que vem a ser uma preparação para poder tentar escrever. Levado por alguns interesses – que ao longo do tempo podem ir se modificando ou se somando – alguma coisa, um fato, uma leitura, uma frase, um som podem sugerir alguma ideia para um poema. Às vezes se consegue fazer o poema, às vezes a coisa não funciona.

Você possui alguma rotina de escrita? Há algum gesto, hábito, ritual que o coloca em um estado de preparo para escrever?
R: Não, nada em especial. Acho que só preciso estar na minha mesa, em casa, com silêncio.

A transitoriedade do tempo e a memória aparecem em muitos poemas do livro, como também a ideia dos deslocamentos de lugares e paisagens. Qual a relação que você estabelece entre a memória e a poesia?
R: A memória me parece que é um dos dados da poesia, geralmente trazendo à cena do poema traços que vão ajudá-lo ou mesmo ser sua base. Devo ter incorrido nisso algumas vezes também, mas sobretudo procuro lidar não com o que a memória contém, mas com a maneira como ela possibilita articular os demais elementos do poema. Não sei se consigo mostrar isso, mas aí já é outra história. 

A epígrafe do livro “Sequências” é um projeto de trabalho da obra de Manfredo de Souzanneto, pintor, desenhista e escultor brasileiro. Como você se relaciona com a obra dele?
R: Pude escrever um texto crítico sobre ele  – para um livro que trata da obra dele, Paisagem ainda que (2015). O texto era acompanhado por um poema em várias partes que está incluído neste meu livro atual, Sequências. Tenho muita admiração pelo trabalho do Manfredo por várias razões. Primeiro porque é sempre um prazer poder apreciar, por exemplo, suas telas. Depois, por se tratar de uma obra que evidencia exatamente uma prática, isto é, um trabalho, concreto, palpável, consequente, no sentido de resultar de uma elaboração continuada. Assim, o desenho que aparece como epígrafe, é o esboço de um trabalho, um plano a ser desenvolvido. Minha intenção foi roubar um pouco dessa ideia de projeto para meu próprio trabalho.

Como seus versos se relacionam com a herança da arte moderna?
R: Me pergunto se isso não seria inevitável. Por exemplo, para quem faz poesia aqui não há como escapar dos que produziram a partir do modernismo – Bandeira, Drummond, Murilo. Ressalte-se que evidentemente não é só isso. Há uma questão de interesse maior pelo que é produzido a partir de uma certa época, não só em literatura. Tenho muito interesse por artes plásticas e por música, e às vezes acho que convivo mais com elas do que com literatura. O que se diz arte moderna continua a se desdobrar, e em termos de público geral ela ainda é difícil.

Nós temos um público que está iniciando a escrita poética, o que você aconselharia para essas pessoas perseguirem e de que maneira? Quais artistas são fundamentais na sua formação como escritor?
R: Naturalmente, ler. Ler o que se faz agora, mas também procurar uma formação, ou seja, ler os poetas que foram criando poesia em língua portuguesa. Aqui, Affonso Ávila, Augusto de Campos, Cabral, Drummond, recuando a Alphonsus de Guimaraens, Claudio Manuel da Costam e por aí vai. Claro, que incluindo ainda os que também em escrevem em português do outro lado do oceano, Pessoa, Cesário Verde, e tanto e tantos. E mais os de outras línguas, nas suas línguas, em traduções, que é outra leitura em que podemos aprender muito. Mas ler também o que vários desses poetas escreveram sobre poesia, sobre o próprio trabalho e sobre poesia em geral. E ainda estudos sobre esses poetas, o que considero fundamental. Para quem pretende trabalhar seriamente com poesia, não dá para ter apenas leitura instintiva, ingênua. E o mais que for possível ou do interesse da pessoa – música, cinema, etc., porque tudo pode se relacionar.E tem a matéria da rua, do jornal, da vida. No meu caso, tive alguma leitura de poesia francesa, não de modo sistemático, mas uma leitura centrada em alguns poucos autores, entre os quais Baudelaire e Francis Ponge. Mas me interessei também por um poeta contemporâneo, Antoine Emaz, cuja poesia é bem diferente do que faço, mas de que passei a gostar muito, e cheguei mesmo a traduzir alguma coisa dele.

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