Caixa de maio
A caixa do mês inclui o livro Geografia íntima do deserto: e outras paisagens reunidas, de Micheliny Verunschk, reunião de seis livros da premiada poeta e romancista pernambucana, incluindo Geografia íntima do deserto, sua estreia de 2003, e o inédito Vestidos vazios, organizados numa nova constelação que evidencia, com mais brilho e força, um traço fundamental de sua poética: Verunschk afia os instrumentos da linguagem poética para escavar, subverter, reimaginar, reinventar tudo, em volta e dentro de si, revelando imagens mais vivas — e reais, por que não? — sob as camadas de que nossa realidade se constitui. Além do livro, também vai na caixinha a plaquete Ranho e sanha, de Guilherme Gontijo Flores, em que o poeta e tradutor faz um verdadeiro elogio do cantar: mergulha nas malhas da voz, dos cantos mais distintos, dos gritos e sussurros mais distantes, para fazer, com a matéria desse coro que se forma no tempo e no espaço, versos que nos levam a soltar a voz e, mais ainda, a abrir bem os ouvidos da alma.
Livro de maio
Autor
Micheliny Verunschk
Quando Micheliny Verunschk estreou na poesia, João Alexandre Barbosa exaltou seu primeiro livro por encontrar nele “não uma poesia de atualidades […] ou de intimidades, mas uma poética que cava fundo nos dispositivos da linguagem”. De fato, os leitores não encontraram uma poeta que se limitasse a descrever o mundo, tampouco alguém brincando na superfície da linguagem. Logo nos primeiros versos, fomos lançados entre abismos e imagens desnorteadoras: a dor é uma “inútil traça” entre os “outonos e infernos”, há um navio se movendo entre os móveis da sala e “o Sol [é um] imenso carrapato agarrado no azul”.
Desde então, a poesia de Verunschk aprofunda esse movimento que, a um só tempo, retorce e desvenda o real: por trás de palavras que põem tudo em ordem — geografias, cartografias, arquiteturas, engenharias, biografias —, há descobertas de “distâncias imaginárias/ que contam/ das reais distâncias entre nós”.
É com essa poesia que faz tudo voar, por dentro e por fora, que os leitores se encontrarão em Geografia íntima do deserto: e outras paisagens reunidas. Em torno de sua obra de estreia, está organizada uma constelação formada por outros títulos, como A cartografia da noite (2010) e B de bruxa (2014), e pelo inédito Vestidos vazios, que convidam a experimentar “o milagre circular do movimento do tempo”, como afirma o poeta e compositor Lirinha no texto de orelha.
Em todas as paisagens, com ecos sutis e diferenças às vezes tão profundas quanto ilusórias, o olhar agudo e a palavra obsessiva de Verunschk fazem brotar o espanto, porque mostram que é possível visitar — numa única viagem, num mesmo labirinto, ao alcance da mão — o sonho, a memória e a realidade.
Plaquete de maio
Autor
Guilherme Gontijo Flores
Aprendemos com um dos nossos maiores cantores: quem traz a vida na voz é capaz de fazer crescer uma flor sem limite. Em Ranho e sanha, o poeta e tradutor Guilherme Gontijo Flores parece partir desses versos de Caetano Veloso e perseguir, no tempo e no espaço, no ouvido e na imaginação, essa flor sem limite, esse fio infinito de cantos que se desdobram e nos envolvem desde que o primeiro de nós decidiu cantar — ou melhor, percebeu que sua voz era um canto e que, sem isso, não seríamos “nós”.
Os poemas exaltam e se inserem nesse coro formado por todos os cantores e cantoras que nos permitem viver outras vidas. Aqui, a voz do poeta se entretece às melodias — conhecidas e desconhecidas, implícitas e explícitas — de Enheduana a Safo, de Clementina a Belchior e Cartola, do Nirvana a seus parceiros do grupo Pecora Loca, dedicado a traduzir e performar poesia antiga, e, com uma declaração de amor às vozes que cantam — e ao que as vozes cantam —, nos faz lembrar das mais remotas origens desse cantar que é o poema.
Aliás, não é por acaso que esses poemas foram escritos por um poeta que é também um dos mais prolíficos e talentosos tradutores da atualidade: o que é um tradutor senão alguém que consegue ouvir o canto de outras línguas e o faz cantar na nossa? Enfim, se é verdade, como cantou o poeta baiano, que voz e vida não se separam, podemos dizer que Gontijo Flores faz versos para que nossos ouvidos se abram para toda a vida que canta ao nosso redor e dentro de nós. E mais ainda: para que soltemos a voz.